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Patrícia Ramalho

“Tem várias Marés dentro da Maré.”

Por Jéssica Pires e Julia Bruce


Esta é a coluna Quem Tece a Redes, um compilado das histórias de pessoas que constroem a nossa organização e que tecem todos os dias o que fazemos de melhor: ações e projetos para moradores da Maré. Conheça aqui essas histórias, trajetórias, experiências e a própria história da Redes da Maré - e como esse trabalho e os desafios enfrentados a partir da pandemia os têm transformado.

Foi na época da universidade que Patrícia Ramalho (36), chegou no Conjunto de Favelas da Maré para um estágio e desde então nunca mais saiu. A assistente social, coordenadora de projetos nos eixos Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça e Direito à Saúde, nasceu em Niterói e cresceu em São Gonçalo, mas tem o território da Maré como sua segunda casa. O transitar pelas 16 comunidades e o contato ativo com os moradores fez do trabalho um grande aprendizado. “O contato direto com os moradores faz com que muitos projetos da Redes deem certo e os moradores confiem no trabalho. Não é à toa que a Redes atua há mais de 20 anos no território”.


Patrícia Ramalho cresceu rodeada por mulheres, morando sempre com a mãe e a avó, depois de perder o pai. De Niterói para São Gonçalo, de São Gonçalo para a Maré, seu movimento de transitar pela cidade do Rio de Janeiro e conhecer outros espaços só começou após a universidade, em 2006, aos 19 anos. Patrícia pensou em cursar Jornalismo e Direito, mas encontrou no Serviço Social um caminho para fortalecer o acesso a direitos das pessoas. “Eu não esperava nada do que estou vivendo hoje". Eu sabia que era uma área que poderia me dar muitas opções de trabalho.

Estudei em um colégio católico e particular em São Gonçalo e ir para a universidade pública foi um grande salto. Eu não tinha a menor ideia de mestrado, por exemplo”, conta Patrícia, que hoje é mestra em Psicologia Social, onde pesquisou as representações sociais acerca das operações policiais na Maré quando realizou entrevistas com mães mareenses para entender o impacto da violência armada e memória social. Patrícia iniciou sua trajetória profissional estagiando na Maternidade Escola da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) durante 2007 e, no ano seguinte, teve o primeiro contato com a Maré, onde estagiou no Centro de Referência de Mulheres da Maré Carminha Rosa (CRMM-CR/UFRJ), na Vila do João, um projeto de extensão da faculdade que atende mulheres em situação de violência com apoio sociojurídico.

"Eu não cheguei a falar com a minha mãe sobre o estágio na favela. Fiz a seleção e passei. Foi um outro processo de contar para ela. No início ela não gostou e ficou preocupada. Desde então, nunca saí da Maré. Terminei o estágio e depois fiz residência na área de Políticas Públicas em Direitos Humanos por dois anos”, diz. Todavia, com essa primeira experiência na Maré, ela contou que não tinha o costume de circular pelas favelas. Ela entrava com o carro da universidade e isso a incomodava. Na época, havia muita operação policial e chegou a ficar um tempo sem ir ao território, quando se reuniam apenas na UFRJ. “Eu lidava muito mais com as pessoas no atendimento, nas oficinas que a gente fazia lá no trabalho, mas a gente não rodava por aqui. Quando vim para a Redes, foi bem diferente, passei a circular por outras comunidades, fazer unha, beber uma cerveja depois do trabalho, entre outras atividades. Existe uma mudança de como eu transito hoje”, releva. .

“Quando eu trabalhava na cantina do Curso Pré-Vestibular, muitos alunos voltavam do trabalho com fome, e tinha as aulas chamadas ‘Corujão’ que iam até meia noite, onde eu servia o lanche pra eles. Tempos depois, alguns já voltaram formados em doutorado, casados, etc. Isso pra mim é gratificante. Costumam falar: ‘Neilde, você ainda tá aqui!’ e ela responde: “Daqui não saio e daqui ninguém me tira!”.

Em 2016, surgiu uma oportunidade para trabalhar como assistente social no projeto Maré de Sabores. Naquele momento, ainda não havia a Casa das Mulheres da Maré, no Parque União, e o projeto funcionava na cozinha da Lona Cultural Municipal Herbert Vianna, equipamento da Secretaria Municipal de Cultura e gerido pela organização, localizada na divisa entre as favelas Nova Holanda e Baixa do Sapateiro, comandadas por diferentes facções. Patrícia atuava como assistente social acompanhando as oficinas temáticas e conversava com as mulheres sobre temas variados. Com esse começo de transição pelo território, ela explica que foi conhecendo várias Marés dentro da Maré. “Quem vive ou transita pelo território percebe como os lugares são diferentes, como são os comércios em determinados lugares, entre outras questões”, avalia.

Nesse movimento, em 2016, Patrícia foi convidada para fazer parte do Eixo de Segurança Pública e Acesso à Justiça Naquele período, não havia nem 100 tecedores na instituição, que triplicou desde então. Os plantões já eram feitos durante os dias de operação policial, mas sem protocolos. Assim, junto à equipe, Patrícia foi construindo o eixo que se tornou uma ampla rede de acesso a direitos e deu origem a diversas mobilizações, campanhas e projetos, como o Maré de Direitos. “Foi quando comecei a atender junto com advogado numa perspectiva de fazer com que as pessoas viessem procurar o atendimento. No Maré de Direitos , foi pensado em um atendimento aberto, espontâneo, onde as pessoas procuravam, independente de sofrerem algum tipo de violação ou por ser em dias de conflitos. Começamos a atender outros tipos de demandas, como saúde, questões previdenciárias, pensão alimentícia, área penal”, relembra o momento no qual também foi coordenadora do projeto.

“O tema da Segurança Pública envolve dores, sentimentos, narrativas muito consolidadas no senso comum, é difícil de falar. Então, como podemos mudar isso, como a gente transforma numa outra fala? Como falamos de direitos humanos se na televisão escutamos outra coisa? Os direitos humanos são para quem? Como a gente contraria essas narrativas?”

Todos esses anos de Redes da Maré fizeram com que Patrícia passasse a olhar para o outro, a ter empatia, a escutar mais e enxergar como ela consegue retribuir. O lugar de coordenar equipe, de liderar, de lidar com outras pessoas e sentimentos não é um trabalho fácil. “Hoje, no eixo de Segurança Pública e Acesso à Justiça somos mais de 40 tecedores”, conta Patrícia, que coordena também o projeto Segurança Alimentar do Eixo Direito à Saúde

O projeto, fruto da campanha Maré diz NÃO ao Coronavírus, realizada de março de 2020 a 2021, nasceu na pandemia e passou a integrar em suas ações as frentes de segurança alimentar, direito à educação e cuidados em saúde. O celular usado para fazer comunicados às pessoas assistidas pelo Maré de Direitos passou a ter a função de atendimento para as cestas básicas, com ações de inscrição e plantão de atendimento. Foi a partir disso que se deu o início do atendimento simultâneo pela nova plataforma de WhatsApp da organização, alcançando outras pessoas que não conheciam a organização e aproximando os moradores de favelas mais afastadas dos espaços da Redes. “Agora, estamos repensando sobre novas ações de segurança alimentar, pensando na sustentabilidade do projeto, em não apenas doar cesta básica, mas atuar tornando possível a transformação na vida dos moradores facilitando acesso a outras políticas”, explica Patrícia.

A tecedora também foi responsável pela realização do 1º Congresso Falando sobre Segurança Pública para Crianças e Adolescentes da Maré (“Congressinho”), evento que juntou 183 crianças e adolescentes de até 16 anos de idade no dia 9 de agosto de 2022 para participar de diversas atividades sobre o tema, como cortejo, pintura em cartazes e tecidos, exibição de filme e até elaboração de propostas para a política de segurança pública na Maré, apresentadas aos pré-candidatos ao governo do Estado do Rio de Janeiro no último dia do Congresso Internacional Falando Sobre Segurança Pública na Maré.

“Com as crianças costuma ser mais fácil, porque elas se soltam e falam o que vem à cabeça. Saímos da Lona, fizemos um cortejo ali na divisa pedindo paz e basta de violência. É uma forma de falar sobre isso com elas que, com certeza, chegaram em casa e reproduziram isso. De alguma maneira, elas são impactadas positivamente. Muitas compartilharam histórias sobre alguma situação que aconteceu com um familiar, por exemplo”.

Outra ação do eixo, prevista para acontecer em novembro deste ano e coordenada pela Patrícia, será o Memorial das Vítimas da Violência Armada na Maré, uma construção coletiva a partir do projeto da Azulejaria que vai registrar nomes, mensagens e desenhos em azulejos como uma forma de homenagem e preservação de memórias dos mareenses. “Queríamos mostrar quem são essas pessoas que estão morrendo, compartilhar suas trajetórias, porque também falamos muito do direito à memória. Realizamos oficinas de azulejaria com os moradores para eles escreverem os nomes e pintar memórias que remetessem ao seu familiar que foi morto. A Redes da Maré tem tudo isso em sua política: pensar em novas narrativas, o desejo de reparação e, sobretudo, de transformação social”.

 

 



Patricia quem tece

 

 

 

 

Rio de Janeiro, 11 de outubro de 2022

 

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