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Festival WOW: um instrumento de comunicação para a democracia

Julia Bruce

A segunda edição do Festival Mulheres do Mundo - WOW, realizada na Praça Mauá entre os dias 27 e 29 de outubro, provou o quanto foi um grande sucesso! Inúmeras filas de pessoas se formaram nos espaços do festival, como Museu de Arte do Rio e Museu do Amanhã, para participar das mesas de conversas com mulheres inspiradoras, o brilho nos olhos do público e a força das mulheres que fizeram este evento acontecer. Com a programação de 9h às 23h, incluindo rodas de conversas, exibições, exposição da feira Negócio Delas, atividades coletivas de organizações parceiras e shows, o WOW reforçou o quanto encontros para celebrar e articular as agendas de mulheres e para elas são efetivos e potentes. Mais de 100 mulheres de todas as partes do Brasil e do mundo vieram compartilhar suas vivências e desafios.

Todo o processo de produção da segunda edição do WOW Rio começou há mais de um ano a partir da parceria com a Fundação WOW, idealizada pela diretora artística Jude Kelly, em Londres, na Inglaterra, e diversas redes estratégicas. “Há um ano e meio viemos pesquisando esses temas que hoje fazem parte do Festival WOW e, a partir dessa pesquisa, vamos construindo e tentando identificar pessoas que estão fazendo esse trabalho acontecer e que muitas vezes não são reconhecidas. E como hoje temos a sensação de que tudo o que está acontecendo está na internet, perdemos muito o olhar sobre o sensível. A ideia desse festival é furar bolhas”, afirma a diretora da Redes da Maré e curadora do Festival WOW, Eliana Sousa Silva. 

Com mais de 40 horas de programação, 200 atividades e mais de 500 convidadas durante os três dias, as principais temáticas desta edição foram a agenda voltada pelos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, o racismo e questões étnico-raciais. Desde sua origem, o Festival, que acontece em 23 países (54 cidades), é considerado como uma plataforma que traz todas diversas perspectivas de gêneros e possibilita uma discussão mais livre e segura para as mulheres. “Pensando na questão dos direitos das mulheres em nosso país, só no século XX (vinte) é que as mulheres passam a ter direito ao voto. Vivemos em um país que teve 21 anos de ditadura militar (entre 1964 e 1985), então essas e outras questões históricas acabam conformando um processo cultural que tem a ver muito com o conservadorismo e o patriarcado que nessas agendas dialogamos com outros países. O Brasil, por ter sido colônia, acabou incorporando muito dessas lógicas que foram trazidas para cá. Quando fizemos os grupos de reflexão, as questões sobre étnico-raciais e os direitos das mulheres pretas e indígenas foram as mais fortes e dialogadas. A partir disso, o WOW nos proporciona pensar como enfrentamos e traduzimos na prática mudanças culturais em relação a tudo isso que vemos como tolerância. Ouço muito que o WOW é um lugar seguro onde as pessoas se sentem livres para ser o que elas querem ser”, reflete Eliana.

 

Da esquerda para a direita: Eliana Sousa Silva e Jude Kelly na abertura do Festival WOW, no auditório do Museu do Amanhã. Foto: Patrick Marinho

 

“O Festival WOW veio com a ideia de celebrar o otimismo, a determinação para o futuro e a possibilidade de estarmos juntas. Tem a ver com a memória, validação, comemoração, trazendo as mulheres para compartilharem juntas, por exemplo, sobre como entendemos as diferentes estruturas no mundo a partir da realidade de mulheres pretas? O Festival também é cuidado, temos que fazer isso por nós. Não somos apenas ativistas, gostamos e atuamos em diferentes frentes.” Jude Kelly

 

 

Política, gênero e lutas: WOW pelo mundo


Uma das atividades da Roda de Conversa reuniu mulheres e representantes de diversas delegações onde acontece o festival ao redor do mundo: Esra A. Aysun (Turquia), Sriya Sharbojoya (Bangladesh), Kanwal Khoosat (Paquistão), Nhooja Ratna Tuladhar (Nepal), onde cada teve a oportunidade de partilhar e informar sobre contextos singulares de cada território. Esra A. Aysun, de Istambul, na Turquia, apela para o quanto as mulheres são ativas e criativas em seus diferentes contextos e o quanto o WOW Istambul vem sendo cada vez mais um espaço seguro de escuta para todos. “Eu não imaginaria que conseguiria trazer a criatividade para a sociedade, as mulheres e os movimentos LBGT+ em um território como a Turquia. Com o WOW em Istambul, vivemos esse sonho que estamos vivendo no Rio, agradeço a Jude que dedicou uma equipe incrível. Eu não imaginaria que teria voz. Com o WOW, conseguimos trazer muitas mulheres que vieram de regiões de conflitos e que se sentiam marginalizadas, e encorajamos as histórias dessas mulheres sobreviventes e otimistas!”, conta Esra, que contribuiu com a criação de uma plataforma para artistas da região, como musicistas e escritoras, e a todo o momento mostravam como estavam com os pés no chão para lutarem pelos seus direitos.

 

Esra A. Aysun, representante da delegação de mulheres do WOW Istambul, na Turquia, falando na abertura. Foto: Patrick Marinho

 

Direitos humanos e suas violações

“Como pensar em democracia sem pensar acesso à informação de forma democrática para quem está à margem? Quem de alguma forma lida com os desafios de acessar tantos outros direitos e tendo todos os outros violados se não a partir da informação? O Maré de Notícias é um grande exemplo de produção nesse sentido”, explica a coordenadora do jornal, Jéssica Pires, durante a atividade de Troca de Experiências “Comunicação para a Democracia” junto a outras jornalistas comprometidas com agendas democráticas e produção de informações e novas representações sobre territórios, grupos e corpos que são estigmatizados com frequência pela mídia hegemônica.

Essa ideia do Festival de trazer um olhar mais sensível e, ao mesmo tempo, construído coletivamente com mulheres brasileiras e de outros países, mostra o quanto ele vem contribuindo para um acesso à informação mais justo e acessível às mais diversas regiões periféricas do Rio de Janeiro. Pautar os direitos humanos em setores diferentes foi um dos grandes diferenciais do WOW desta edição, pois buscou o autofortalecimento e o autoconhecimento de cada mulher ali presente.

“O tema da segurança pública é dominada por homens e ter essa temática no WOW que está sendo discutida com mulheres diversas e que também reúne uma mesa de mulheres que vivenciam essa realidade e estão em um processo de busca de conhecimento e de autofortalecimento para lidar com isso, mas sobretudo compartilhar esse conhecimento com outros, me sinto lisonjeada de estar falando com vocês sobre esse tema. Durante minha vida, eu não entendia por que a polícia odiava tanto a gente e me dediquei ao longo da trajetória acadêmica sobre as questões sociojurídicas. Nada explica muito bem essa construção social, mas a história explica, porque diante de um país escravocrata, não temos como ter outra conjuntura de atuação que não seja essa que está posta. A segurança pública não é exclusividade da polícia, mas um tema social em que é dever nosso nos reunirmos e estarmos ali intervindo objetivamente para uma realidade diferente da que estamos vivendo hoje nas favelas do Rio de Janeiro”, reforça a coordenadora do eixo Direito à Segurança Pública da Maré e Acesso à Justiça da Redes da Maré, Liliane Santos, na mesa da Territórios de Partilha: “Violência e Segurança Pública”


A conversa reuniu ativistas como Assa Traoré, da França, que teve seu irmão morto por policiais sob custódia no dia do seu 24º aniversário, em 19 de julho de 2016, na cidade de Beaumont-sur-Oise, situada na periferia, 45 km ao Norte de Paris. Sua morte provocou uma série de protestos e movimentos pela região e contribuiu com a criação de uma série de medidas pelo governo, como a proibição de estrangulamento em abordagens policiais. Ivanir Mendes, mãe de Moisés Mendes de Santana, que foi assassinado no morro Cantagalo-Pavão-Pavãozinho, localizado entre Ipanema e Copacabana, na zona sul do Rio de Janeiro em 2017, também esteve presente junto com a socióloga e militante do Coletivo Fala Akari, Buba Aguiar.

 

Da esquerda para a direita: Assa Traoré, Liliane Santos, Ivanir Mendes, Buba Aguiar e a jornalista Cecília Oliveira. Foto: Patrick Marinho

 

Ao mesmo tempo, indo de encontro à outra luta pela justiça ambiental e climática, os efeitos e as consequências do colapso climático são profundamente desiguais e ampliam ainda mais as já existentes vulnerabilidades dos territórios favelados, passando por diversas formas de violação de direitos básicos. 

“O WOW traz uma dimensão do afeto da nossa história, mas infelizmente não voltamos nela porque o Brasil não é um país que retorna a sua memória. Quando olho a justiça e racismo ambiental, sempre lembro do que a Maré estava fazendo nos anos 1940. Muitas pessoas migraram do Nordeste e de outros lugares para o Rio de Janeiro em busca de uma vida melhor, fugindo da seca, por exemplo, mas precisamos nos questionar: hoje tem muito lugar com água, mas quem tem acesso à ela e como está privatizada nesse lugar? Quando essas pessoas chegam à Maré, vão lutar por direitos, principalmente por moradia e trabalho. Eu percebi que há um problema na formulação do termo “justiça ambiental” cujo princípio é que nenhum ser humano irá sofrer desproporcionalmente a degradação do espaço”. O conceito já parte de uma história de justiça, precisa ser questionado e também é essencial todos terem o direito conhecer a memória, a história dos espaços onde cresceram. 

 

 

A força das mulheres na produção alimentar e saúde

Segundo dados do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (junho de 2022), da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), já são 33,1 milhões de brasileiros em situação de fome. Mais da metade da população do país (58,7%) está em insegurança alimentar.

No início de 2020 e com a construção da campanha Maré diz NÃO ao coronavírus, a frente de segurança alimentar da Redes da Maré conseguiu encontrar famílias que não acessavam os projetos da instituição, sobretudo pelo motivo de suas prioridades individuais.

A coordenadora da Casa das Mulheres da Maré e do projeto Maré de Sabores, Mariana Aleixo, alerta sobre como os bolsões de pobreza nas favelas e periferias não recebem alimentos de qualidade. “A partir dos projetos da Casa das Mulheres, vamos entendendo esse território e o ambiente alimentar, porque as escolas são fundamentais para garantir a alimentação das crianças, por exemplo. Além disso, vale atentar como pressionamos o estado para garantir que o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) tenha 30% da alimentação escolar dentro da Maré a partir da agricultura familiar e conduza um projeto mais amplo de segurança alimentar no território”, diz.

Junto às aulas de gastronomia do Maré de  Sabores, são oferecidas aulas de gênero e sociedade para discutir essas questões a partir da perspectiva da mulher com questões como: O que é ser mulher na Maré? O que é ser uma mulher de favela? O que é ser uma mulher racializada? Quais são as questões que vão atravessar suas vidas e como elas podem enfrentar isso de forma coletiva? 
 

 

“É nesse espaço que começamos a refletir como é fundamental pensar na condição de vida da mulher para pensar estruturalmente como estamos incidindo no território. Quando alcançamos uma mulher, o impacto na vida dela não é individual, mas sim coletivamente de quem está ao seu redor”, afirma Mariana.

 

Uma das convidadas da mesa Política na Cozinha e (In)segurança Alimentar, Damiana Vicente é nascida e criada em Santana do Cariri, no Ceará e tem a sua própria agricultura familiar. Ela preza pela educação alimentar, pelo cuidado com o solo, pela produção de alimentos naturais sem agrotóxicos, inseticidas, acidulantes, corantes, aromatizantes e outras substâncias que são colocadas até chegar às prateleiras dos mercados. Ela atenta sobre como é necessário fazer um estudo com um olhar mais voltado sobre esses sistema de produção alimentar. “Se estou aqui hoje é com a comprovação de que produzir alimento de qualidade e seguro é possível!”, afirma.

 

Damiana sempre teve vontade de fazer um curso técnico em alimentos. Seu marido a proibiu de fazer porque acreditava no seu potencial e dizia que ela poderia ser mais. “Isso me deu um fortalecimento muito grande, mas de uma maneira voluntária me tornei a chefe da minha cozinha, porque é onde consigo desenvolver uma receita culinária exclusiva, consigo chegar a um tempero caseiro que criei, consigo refletir sobre a minha história, relaxar, é onde me identifico em preparar alimento e comida, com temperos, cores e muito amor para servir as pessoas que nos visitam. O maior retorno de felicidade que sinto é quando uma pessoa chega pra mim e diz: faz muito tempo que não me alimento tão bem, porque na sua comida não tem nenhum tempero que venha da indústria, é o seu tempero”, se emociona.

 

Direitos sexuais e reprodutivos

Quais as relações entre saúde e direitos das mulheres? Como profissionais da atenção básica e movimentos sociais articulam em suas práticas essas relações? Essas foram algumas das trocas de experiências em uma das quatro atividades sobre a defesa dos direitos sexuais e reprodutivos.

Uma das histórias compartilhadas foi acerca da Frente de Direitos Sexuais e Reprodutivos da Casa das Mulheres da Maré, o MARÉAS. Com apenas sete Unidades Básicas de Saúde (UBS) no Conjunto de Favelas da Maré, percebe-se que o acesso à informação e aos métodos contraceptivos para as mais de 70 mil mulheres mareenses (número que mostra a presença maior deste gênero no território, de 51%) é ineficiente. No início da pandemia, houve um aumento de demandas por métodos contraceptivos nessas unidades. A partir disso, a equipe da Casa teve a ideia de construir em parceria com a organização sem fins lucrativos Nosso Instituto uma primeira formação sobre o tema, articulações com a CAP 3.1 - para oferecer formações aos médicos que promovam o acesso aos contraceptivos e informem cada vez mais à população -, além de oferecer dispositivo intrauterino (DIU). A primeira formação on-line recebeu 734 inscrições em poucas horas. Na época, a equipe também recebeu doações de coletores, produziram materiais sobre manejo menstrual nas cenas de uso de crack na Maré, e assim foi surgindo a Frente de Direitos Sexuais e Reprodutivos da Redes da Maré. Ao longo do meses, foram realizadas formações com as equipes internas e psicossociais do equipamento para todas estarem capacitadas acerca do tema cada vez mais. “Nessa busca por métodos contraceptivos, 75% são mulheres que têm até 1 salário mínimo. Quase 60% são mulheres negras. Como está a saúde dessas mulheres? Essas mulheres estão tendo acesso à informação? Elas não querem ter filhos agora para estudar ou não têm condições de criar um filho agora?”, reflete a coordenadora do MARÉAS, Andreza Dionísio.

 

 

O termo “WOW” é uma sigla para o nome em inglês “Women Of the World”. O Festival traz em sua logo o significado de força, de que as mulheres são maravilhosas, que podem enfrentar barreiras e todas também fazem parte da história. Foto: Douglas Lopes

 

A jornalista Amanda Célio finaliza uma das mesas do último dia do Festival ressaltando toda essa pulsação do WOW: “O Festival é um instrumento importante para se pensar a comunicação com democracia e que pode colaborar muito com essa construção. Ele é construído de forma muito artesanal, a partir de mais de um ano de pesquisa, para trazer jornalistas do mundo inteiro. Hoje estamos com uma delegação de mulheres de 14 países e 200 atividades acontecendo ao mesmo tempo. Pensando nisso, estamos fazendo uma comunicação para a democracia. Quando falamos de democracia, também estamos falando de inclusão, acessibilidade, de como construir espaços mais seguros, como construir espaços mais democráticos”, reforça.

 

Feira Negócio Delas

 

Entre julho e agosto de 2023, foram abertas as inscrições para o Edital de Participação Negócio Delas. A feira foi um espaço para divulgar as experiências de mulheres que souberam transformar o seu modo de fazer em inovação, produto e serviço e teve como objetivo o fortalecimento da criação, produção, distribuição e consumo de produtos e serviços geridos por mulheres e redes que atuam com o tema de gênero, como estratégia de autonomia e desenvolvimento. Este ano, todas as selecionadas tiveram a oportunidade de participar de uma formação junto ao Sebrae. Veja algumas falas:

 

LUZ DA TERRA

Tereza de Jesus, 59, moradora de Cascadura, atuei como guia de turismo desde 2011 em Rio Claro (RJ) e, na pandemia, comecei a trabalhar com artesanato a partir de bijuteria, macramê, crochê, cristais e bonecos de biscuit, todos na linha da espiritualidade, agregando diferentes religiões, como o catolicismo, budismo, candomblé, etc. Costumam chamar de “Barraca da Paz” (risos)! Conhecemos a feira Negócio Delas pelo Sesc de Madureira, dentro de uma formação de empreendedorismo, me inscrevi e aqui estou! Faço tudo isso sozinha, temos sempre que estar sempre em movimento! Conheça mais aqui.

 

FAZENDO CERIMÔNIA

Andreia Santos, 40, moradora do Parque União, trabalho com organização de casamentos e assessoria de pets. Se você tem um pet que quer que participe da cerimônia levando aliança, faço toda a assessoria (pego em casa, levo para o casamento, arrumo, ensaiamos, fotogramos, cuido durante a festa e depois levo para casa). Eles são da família e num momento importante como esse eles têm que estar presentes. Também tenho um banho e tosa na Maré, sempre trabalhei com pets. Comecei a estudar, fiz cursos e montei minha própria empresa de cerimonial de casamentos, há 1 ano. Uni minhas duas paixões: casamento e bichos. Conheça mais aqui.

 

A&A FOTOGRAFIA E PAPELARIA

Amanda Santos, 42, moradora do Parque União e irmã da Andreia. A fotografia já existe há 16 anos na minha vida. Meu marido é fotógrafo e o ajudo com o trabalho de fotografia nas escolas da Maré. Na pandemia, perdemos todos os serviços de fotografia porque as escolas pararam e entrei com a atividade de papelaria, via muitos vídeos e comecei a gostar muito. Comecei a fazer bloquinhos, aprendi a fazer encadernação, agendas, planner e juntei com a fotografia. Hoje, é o que mais sustenta minha família. Me apaixonei por essa parte, é minha terapia, sinto prazer, apesar de ser um trabalho manual e cansativo é o que me deixa feliz. Conheça mais aqui.

 

 

Foto: Douglas Lopes

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