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REMA MARÉ: a coletividade para promover a saúde mental

Julia Bruce

Entre os dias 16 e 19 de novembro, foi realizada no Conjunto de 16 Favelas da Maré a 2ª Semana de Saúde Mental, conhecida como “REMA MARÉ”. A programação contou com a inauguração de mais um painel de azulejos no Beco do Galo, apresentações artísticas, uma série de mesas sobre as práticas e cuidados com a saúde mental, além das “Oficinas “ e “Diálogos” com os coletivos selecionados pela chamada pública do projeto. Cerca de 230 pessoas participaram das atividades propostas. 

A segunda edição continuou com a parceria da People's Palace Projects que esteve envolvida nos projetos artísticos, como no lançamento do mural de azulejos, no show do cantor mareense Jonathan Panta, na produção do espaço imersivo para o podcast “BECOS”, no desenvolvimento do conteúdo da nova cartilha de saúde mental (“Cartilha Primeiros Cuidados Psicológicos - Ajudando quem ajuda, cuidando de quem cuida”), nas rodas de conversas, entre outras atividades. “Tudo isso é fruto de uma parceria que começou com a pesquisa internacional “Construindo Pontes” (2021) sobre o impacto da violência na saúde mental dos moradores da Maré que lançamos no ano passado. A People’s Palace Projects liderou esse projeto com a Redes da Maré e uma rede de acadêmicos no Brasil e no Reino Unido, financiada pelos conselhos de pesquisa do Reino Unido”, explica a Gerente de Comunicação da organização, Yula Rocha. 

 

Primeiro dia da 2ª Semana de Saúde Mental na Maré com a inauguração do painel de azulejos no Beco do Galo, no Parque União, e apresentações artísticas de apresentações artísticas de Jonathan Panta, Mc Martina, Math de Araújo, Thainá Iná, Thaís Ayomide e Rafael Rocha.

 

Um dos assuntos mais discutidos no dia das mesas foi o cuidado com as pessoas que usam crack, álcool e outras drogas por meio do convívio e circulação pela cidade, no contexto da reformulação da lógica manicomial no país e do fim dos hospitais psiquiátricos - cujo histórico de “tratamento” se baseava no isolamento e nas práticas de violência com os usuários. “O Brasil teve uma lógica manicomial de exclusão das pessoas consideradas ‘adoecidas mentalmente’ em hospitais manicomiais e espaços de internação de longo prazo. Essa política foi revista por conta de todas as denúncias de violações de direitos humanos e da exclusão vivida por esses pacientes e foi criada uma nova política de saúde mental que hoje em dia aposta no cuidado em liberdade, como a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS)”, explica a coordenadora do eixo Direito à Saúde da Redes da Maré, Luna Arouca.

Na mesa “Práticas inovadoras no cuidado em saúde mental”, foram apresentadas as experiências do Centro de Convivência e Cultura Trilhos do Engenho, do ambulatório de Saúde Mental do CMS Milton Fontes Magarão, da Casa das Mulheres da Maré e do Espaço Normal. Os profissionais convidados que atuam nesses equipamentos compartilharam essa reinvenção do trabalho em hospitais psiquiátricos do Rio de Janeiro.

Há serviços que, hoje, fazem a rede de atenção psicossocial, como os centros de convivência, mas “o ambulatório é um serviço mais velho da rede de saúde mental. O primeiro do Brasil foi inaugurado dentro de um hospital psiquiátrico com a lógica de ser uma extensão dele. Inclusive, foi criado no Instituto Municipal de Assistência à Saúde Nise da Silveira. O cuidado da saúde mental não é só dentro das especialidades acadêmicas, mas também é no contexto social onde ocorrem essas práticas. É fazer um cuidado alinhado às realidades do Brasil”, relembra o coordenador do ambulatório Eduardo Castro, situado também no Engenho de Dentro. Ele explica que o usuário chega por meio do encaminhamento do Sistema de Regulação (Sisreg) com demandas de saúde, mas a equipe não tem um conhecimento aprofundado de como ele veio. A partir disso, a equipe do ambulatório faz um primeiro contato para conhecer sua história, o que o traz ali, quais singularidades marcam aquele corpo e sofrimento, e uma das perguntas feitas é: “O que você acha que o ambulatório pode fazer por você?”.

 

Parte desse processo começa através de articulações, por exemplo, com diversos atores locais e projetos sociais, aproximação de ambulatórios com diversos CAPS, entre outras estratégias. Grande parte das atividades também são feitas através de dispositivos artísticos e educativos que ajudam no processo de cuidado. “O centro de convivência foi um dispositivo que surgiu dessa desconstrução do manicômio, ligado à promoção da saúde mental e reabilitação dos pacientes. Os usuários desenvolvem sua cidadania ocupando os espaços da cidade. Hoje os CAPS estão se reinventando. As oficinas são feitas em outros lugares na cidade para fazer com que eles vivenciem a prática e o cuidado territorial”, reforça a coordenadora do Centro de Convivência e Cultura Trilhos do Engenho Roberta Oliveira, localizado no Engenho de Dentro, subúrbio do Rio.

A psicóloga da Casa das Mulheres e redutora de danos, Fernanda Vieira, conecta essa fala com os projetos desenvolvidos pela Casa que falam da necessidade do que o território está expressando: “vamos pensando e construindo, e com o equipamento não foi diferente. Não tem como pensar em saúde mental sem pensar na interseccionalidade, sem entender das violências de gênero que as mulheres passam, sem entender se esse corpo é trans, de uma mulher parda, preta, qual a orientação sexual, etc. principalmente em um território de favela”. O equipamento localizado na favela do Parque União atua em diversas frentes de trabalho, como atendimento psicossocial e sócio jurídico,sociojurídico, ações sobre direitos sexuais e reprodutivos, alfabetização de mulheres, cursos de qualificação, entre outras.

 

Mesa “Práticas inovadoras no cuidado em saúde mental”, com Rodrigo Pereira, Eduardo Castro, Fernanda Vieira, Roberta S. Oliveira e Lilian Leonel (da esquerda para a direita)

 

A redutora de danos Lilian Leonel foi uma das primeiras pessoas assistidas pelo Espaço Normal e contou sobre sua trajetória nesse equipamento. Hoje, ela atua como redutora de danos e se emociona falando como é reconhecida em sua comunidade, na qual muitos moradores chegam a pará-la na rua para tirar alguma dúvida sobre atendimento de projetos da Redes da Maré, cesta básica ou como fazer para tirar uma documentação, por exemplo. “Tínhamos medo da aproximação, se eles iam nos internar, mas o Espaço Normal foi a ponte. Foi perguntado a um rapaz o que ele tinha vontade de fazer na sua vida, assim começou a estudar sobre eletrônica na organização. Foi a partir disso que o pessoal ganhou confiança e as ações foram iniciadas, como o consultório de rua. Nos ofereceram conhecer espaços da cidade, um lazer e relembrar o que tem lá fora (praia, teatro, pizza). A ida para esses lugares era uma redução de danos. Nós somos chamados de loucos e é onde entra a saúde mental. A primeira coisa que o Espaço Normal me ensinou é a ser capacitada, relata Lilian emocionada e com o desejo de ser a psicóloga do Espaço Normal um dia.

 

Construindo Pontes (2021)

Como vai a saúde física e mental dos moradores de favelas? Quais são os efeitos da violência armada sobre a mente e o corpo dos indivíduos que vivem nestas comunidades? Como essas pessoas cuidam do seu bem-estar e lidam com os riscos de um cotidiano violento? Essas foram algumas das questões que guiaram a pesquisa Construindo Pontes (2021) durante uma investigação de 2018 a 2020 nas 16 favelas que compõem a Maré. Dados como: “13.537 domicílios passaram por invasões, muitas vezes acompanhadas de violência verbal, extorsão e perdas materiais”; “42 mil pessoas da Maré reconhecem que a violência armada tem impacto na sua saúde mental”; “mais de 70% já vivenciaram uma situação de violência e reconhecem o efeito danoso na sua saúde física e mental”; entre outros, foram compartilhados pela pesquisadora e professora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Miriam Krenzinger, que participou da mesa “O que já sabemos sobre saúde mental no conjunto de favelas da Maré: as experiências dos estudos Construindo Pontes e Vacina Maré”.

 

Ronald Fischer, pesquisador da Victoria University e do Instituto D'Or de Pesquisa e Ensino (IDOR), que vem estudando sobre o tema da covid-19 longa e seus impactos na saúde mental através da pesquisa Vacina Maré, atenta que não há muitos bancos de dados em que os investigadores podem usar para comparar os dados da saúde mental antes e durante a pandemia. “Foi o primeiro desafio. Muitas pessoas relatam problemas e parece que tem um aumento de relatos sobre saúde mental, ansiedade, depressão, etc. Mas há um aumento em si ou as pessoas estão se sentindo mais à vontade para falar sobre isso?”, reflete.

Em muitas residências, os moradores ao serem perguntados sobre saúde mental não entendiam o que era esse termo, mas foi observado que sentiam tristeza, estresse, tomavam remédio, etc. Dessa forma, a equipe foi trabalhando didaticamente com os moradores ao mesmo tempo. “A demanda por saúde mental tem sido maior que a demanda por cesta básica. Tudo passa pela educação, entregamos cartilhas e conversamos. Tudo passa por nós, pelo autoconhecimento, mas também passa pela responsabilidade do estado em fornecer. A pesquisa serve para pressionar o Estado e incidir em políticas públicas”, explica a tecedora e pesquisadora de campo, Maria Daiane de Araújo. Acesse aqui a cartilha “Saúde mental não é dor de cabeça” atualizada neste ano. No momento que coletava dados para a pesquisa Construindo Pontes, a tecedora vivenciou na pele uma situação de violência com impacto em sua saúde mental, policiais militares tentaram invadir sua casa durante uma operação na Maré. Ela conta que a partir desse episódio foi entendendo melhor o que as pessoas contavam nos questionários. “Me coloquei nesse lugar”, afirma.

 

“Falar de saúde mental é falar de afirmação da vida e não necessariamente de práticas terapêuticas ou de instituições especializadas. É preciso falar do território, é preciso falar das condições sanitárias, do acesso ao trabalho, da violência de gênero, do braço armado do estado. É preciso falar do que atravessa a vida para falar sobre saúde mental. Saúde mental não é dor de cabeça, não é apenas insônia, não é apenas estresse, é também política pública, projeto e sociedade, é ter acesso às relações familiares, ao afeto. Eu acho que a Redes tem esse papel de contribuir para que as pessoas não tenham apenas acesso a recursos objetivos, mas também subjetivos.

Raquel Gouveia, professora da UFRJ e pesquisadora em saúde mental

 

Roda de conversa: "Arte de viver em minha pele", com Sabrina Fortunato Martins, Danielle Varella e Amanda Dias

 

Grandes nomes brasileiros da luta contra os manicômios e adeptos ao cuidado humanizado, como Dona Ivone Lara e Nise da Silveira, também foram representados na 2ª Semana de Saúde Mental. As ideias de liberdade, convívio e práticas de arte, como desenhos, pinturas e musicoterapia, enfatizadas pela médica psiquiatra Nise da Silveira e pela assistente social e enfermeira Ivone Lara, contribuíram com o desenvolvimento de afetos e melhoras na recuperação das pessoas assistidas. Entenda mais na reportagem do Maré de Notícias.

 

Assista a transmissão da 2ª Semana de Saúde Mental na Maré:

 

 

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