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TESTEMUNHOS DE DENTRO • 3

Imaginem a dor de perder quem você ama. Pensem em viver esse momento sendo totalmente desrespeitado. É sobre questões como essas, que acontecem todos os dias com moradores de favelas, que precisamos refletir.

Na manhã desta quinta-feira, 11 de maio, um homem de aproximadamente 60 anos de idade nos relatou estar vivendo uma verdadeira via crucis. Muito emocionado, ele nos contou da morte da sua esposa e das suas tentativas de remover o corpo da casa onde moravam na Nova Holanda, uma das 16 favelas da Maré. Em decorrência da operação policial que começou muito cedo, ele não conseguiu ajuda para que o corpo fosse transportado de forma digna.

O morador disse que na quarta-feira (10), à noite, sua esposa quis ficar na sala, ao lado dele, assistindo a filmes e se distraindo. Eles colocaram um lençol no chão e deitaram, um ao lado do outro, para aproveitar aquele raro momento juntos. Por volta das três horas da manhã, ele ouviu as últimas gargalhadas da sua companheira. Ela parecia feliz. De repente, ele percebeu que a voz dela estava ficando fraca e ela começou a vomitar, ficando muito fria, gelada. Infelizmente, a mulher veio a óbito rapidamente.

O marido, desnorteado e sem saber a quem procurar para pedir ajuda para remover o corpo, começou uma peregrinação sem fim. Tomou a iniciativa de ir até um ponto do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), que fica na Avenida Brasil, na altura da entrada da favela da Vila do João. Era um pouco distante da Nova Holanda, mas ele tinha de fazer algo para retirar sua companheira do chão da sua casa.

Chegando no ponto do SAMU, ficou sabendo que não havia ambulâncias disponíveis para atendê-lo, pelo fato de estar havendo uma operação policial no território. A segunda alternativa foi se dirigir até o Hospital Federal de Bonsucesso para pedir ajuda. Mais uma vez não conseguiu a orientação que precisava para a retirada do corpo. Outra alternativa poderia ser uma das Clínicas da Família que existem na região, mas também devido à operação policial, estas se encontravam fechadas. Em um dia comum, sua esposa já teria tido o seu óbito atestado logo nas primeiras horas da manhã por uma dessas Unidades de Saúde, e esse senhor já estaria com o trâmite do sepultamento em andamento.

Nesse momento difícil e depois de buscar muitos caminhos, o homem foi acolhido por uma equipe de profissionais da Redes da Maré. Entramos, mais uma vez, em contato com o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU). Nesses casos de morte em casa, só depois que eles atestam o óbito é que o corpo pode ser retirado. Recebemos como retorno que a equipe do SAMU não se deslocaria até a favela para a retirada do corpo, pelo fato de estar ocorrendo uma operação policial.

Diante de mais essa negativa, fomos buscar auxílio jurídico na Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, pois algum encaminhamento precisava ser feito. Após três horas de espera, uma terceira tentativa de contato foi realizada com a SAMU, solicitando posicionamento sobre a chegada do carro. Fomos informados que deveríamos esperar.

Na tentativa de acelerar o processo e dar fim ao desrespeito com a dor daquele homem, acionamos o Ministério Público. Desta vez, fomos fazer essa denúncia grave sobre o que essa família da Nova Holanda estava sofrendo. Depois de pressionarmos bastante, às 18h, uma equipe do SAMU finalmente chegou para atestar o óbito daquela mulher que se encontrava desde às 4h da manhã morta no chão da sua sala. Só a partir desse atestado é que o corpo poderia ser removido, o que aconteceu somente às 23h.

Esse caso nos deixou perplexos, mais uma vez. Ficamos sem entender o descaso e a falta de respeito com as vidas, e até com os mortos nas favelas. Até quando vamos ter sofrer com esse cotidiano?

 

Rio de Janeiro, 12 de maio de 2023

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