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Testemunhas do horror em um dia de operação policial

Mais um dia que começou e mal sabíamos o que viveríamos. Estava claro, contudo, que este seria um dia longo e com muitas histórias. As mesmas que se repetem na vida de moradores de comunidades.

Ainda na ressaca da vitória do Brasil na sua estreia na Copa do Mundo, o dia 25 de novembro chegou de forma abrupta para moradores de algumas favelas da Maré – Vila dos Pinheiros, Morro do Timbau, Baixa do Sapateiro. Parque Maré, Nova Holanda, Parque Rubens Vaz e Parque União. Algo de muito negativo já se anunciava, desde o dia 23, quando vários policiais se fizeram presentes nas entradas de algumas ruas principais da Maré com seus carros blindados estacionados.

Mas na sexta-feira, às 4h45, antes mesmo do dia raiar e os moradores começarem a sair para o trabalho, as crianças irem à escola, os comércios abrirem as portas, dentre outras ações que fazem parte da rotina da população no cotidiano, chegam notícias de que havia helicópteros da polícia sobrevoando baixo, próximo ao telhado das casas, em algumas favelas da Maré. Além disso, são relatados registros de tiros e presença de cinco veículos blindados. E é esse o momento que se inicia uma rede de troca de mensagens e comunicação para dentro e fora das favelas, instalando-se uma sensação de medo e insegurança generalizada.

Como sempre acontece nos momentos de operação policial, faz 10 anos, a equipe do eixo Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça, da Redes da Maré, se articula para ir às ruas e acompanhar o desenrolar de mais uma intervenção bélica. Bom lembrar que esse era um dia importante para a equipe, pois tudo estava organizado para uma viagem de trabalho desse eixo quando todos ficariam juntos, três dias, planejando as prioridades do trabalho para o ano de 2023. Não houve dúvida quando nos vimos diante dessa situação: uma parte do grupo seguiu para o planejamento e outra ficou para acompanhar o processo da operação policial, que levou em torno de 15 horas de terror e pânico para os moradores.

E assim, antes das 5 horas da manhã, muitos relatos de violações de direitos chegavam para o grupo da equipe do eixo de segurança pública. Soubemos que carros estavam sendo arrombados e depredados na Nova Holanda, casas invadidas no Parque União e Morro do Timbau e, logo em seguida, próximo das 7h, recebemos a notícia de que dois moradores haviam sido executados pela polícia no Beco da Alegria, no Parque Maré, além de um policial que foi ferido. Tudo isso, imaginem, num contexto de intensos tiroteios.

Mais um dia que começou e mal sabíamos o que viveríamos. Estava claro, contudo, que este seria um dia longo e com muitas histórias. As mesmas que se repetem na vida de moradores de favelas. A operação policial vai se concentrando em algumas favelas - Nova Holanda e Parque Maré – e uma das pessoas assassinadas, Renan Souza de Lemos, 24 anos, foi colocado num carrinho de mão pela família e o seu corpo levado para a avenida Brasil. Aqui podemos parar e pensar: por que a própria família resolveu retirar o corpo do local onde o crime aconteceu? Isso se explica como um gesto de cuidado da família com o seu ente querido pelo medo de deixá-lo exposto no chão já que, historicamente, o serviço público de recolhimento de corpos, normalmente, não presta esse atendimento como deveria em territórios como as favelas da Maré. É, sem dúvida, um ato de desespero para que possam vivenciar o luto e a perda.

Esse corpo fica exposto durante quatro horas na avenida Brasil e, ao mesmo tempo, a equipe do eixo de segurança pública faz acolhimento à família, diferentes articulações junto ao Ministério Público, à polícia militar, ao corpo de bombeiros, dentre outros, a fim de que a Defesa Civil comparecesse para retirar, mediante o registro de ocorrência, o que não foi feito pelos agentes da operação policial. O corpo só foi retirado quase às 11h da manhã, após a Divisão de Homicídios ser acionada e fazer o registro pelo telefone, sem vir presencialmente fazer a perícia, o que seria o correto.

Esse contexto da morte do Renan Souza causou um conjunto de reações e, de repente, algumas manifestações questionam a forma bruta e desrespeitosa com que a polícia vai conduzindo o processo da intervenção. Houve tentativas de fechamento de uma das pistas da avenida Brasil, o que foi reprimido de forma violenta pelos policiais que lançaram bombas de efeito moral, jogaram spray de pimenta e atiraram com balas de borracha contra os moradores, inclusive os familiares das pessoas assassinadas, que se encontravam revoltados com a situação que se criou.

E as violações continuavam e notícias assusadoras chegavam durante todo o dia: invasão de domicilios com depredação e furtos, pessoas sendo mantidas em cárcere privado, principalmente jovens, assédio sexual, violencia física e psicológica, torturas e ameaças, dentre outras violações. Ou seja, um dia de horror. Diante de tudo isso, nos perguntamos o que mais precisa acontecer para que essa forma de atuação das polícias seja questionada, modificada e desnaturalizada?

As operações policiais nas favelas da Maré vêm se sofisticando da forma mais cruel possível ao longo do tempo. Hoje percebemos que a falta de responsabilização sobre os atos dos profissionais do aparato da segurança pública, no momento de uma operação policial, é algo que não diz respeito a ninguém ou nenhuma instituição.

Se, por um lado, o Ministério Público, que tem a atribuição de fiscalizar a ação dos policiais, não acompanha as violações que ocorrem nessas circunstâncias, tampouco oferece respostas substanciais para os abusos cometidos por quem deveria controlar. Por outro, o governo do estado, ao invés de garantir o direito à vida e à segurança pública, no caso dos moradores de favela, é o maior promotor das violações e do descaso com as populações mais negligenciadas pelas políticas públicas.

Os desencontros de informação e o descaso com as pessoas que são assassinadas e seus familiares é algo deliberado. Nessa última operação, as famílias e os profissionais do eixo de segurança pública chegaram a ir em quatro hospitais, uma delegacia e no Instituto de Médico Legal em busca de corpos que se tinha notícias de que foram alvejados por arma de fogo, mas que estavam desaparecidos. Fato que deixava a família dessas pessoas mais desesperadas.

Mas o curioso é que a cada vez que buscávamos uma informação precisa sobre o paradeiro dessas pessoas, nos deparávamos com uma informação errada, trazida pelos próprios policiais no campo. Isso, sem dúvida, é inaceitável e mostra a ação deliberada de desrespeito com os moradores de favelas. Nesse dia, de muitas violações e barbárie em seis favelas no Rio de Janeiro, a operação policial, no caso de algumas favelas da Maré, seguia até o horário noturno. Passava das 18h e a equipe do eixo de segurança pública ficava sabendo que alguns policiais se mantiveram em cima de algumas lajes das casas de moradores, escondidos, vindo a assustá-los, deixando dúvidas sobre o sentido desse tipo de estratégia.

No final do dia, contamos oito assassinatos, duas pessoas feridas, quatro invasões a domicílios, algumas Clínicas da Família com atividades suspensas, 40 escolas fechadas, vários projetos sociais que não puderam funcionar, quase 1.000 estabelecimentos comerciais do Parque União, Parque Rubens Vaz, Nova Holanda, Parque Maré e Baixa do Sapateiro que interromperam suas atividades, além da falta de mobilidade que se estabeleceu com o terror que foi essa operação policial. Sem falar de outras violações de direitos fundamentais que afetam, sobremaneira, a vida dos moradores nas 16 favelas da Maré, o que inclui a saúde mental de quem vive aqui. Além das oito mortes na operação da Maré, ficamos sabendo que mais sete pessoas foram assassinadas nas intervenções ocorridas, neste mesmo dia, no Morro do Juramento e Morro do Estado em Niterói. Ficamos pensando também como esse processo aconteceu nessas duas favelas?

Pensamos em tudo isso que acontece aqui no Rio de Janeiro e o que mais será preciso ser feito para que alguma medida coletiva, que envolva a sociedade, possa mudar esse quadro.

Rio de Janeiro, 05 de dezembro de 2022.

Artigo publicado no www.nexojornal.com.br

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