As forças policiais estão realizando a ocupação bélica da Maré, o maior conjunto de favelas do Rio de Janeiro, onde residem 130.000 pessoas, em 16 localidades distintas e assistimos a isso com um misto de esperança e apreensão. Afinal, essa intervenção ocorre numa data emblemática: exatamente há 50 anos, as Forças Armadas feriram os pilares da democracia e impuseram mais de duas décadas de ditadura ao país.
As democracias têm como pressupostos garantir direitos fundamentais como a liberdade de expressão, a proteção legal com igualdade, a participação plena na vida política, econômica e cultural a todos os cidadãos. As ditaduras, ao contrário, submetem os interesses dos cidadãos ao arbítrio, censura e interesses do Estado autoritário. O desafio que vivemos aqui na Maré é identificar qual a face do Estado que nela se fará presente.
Com efeito, a noção de um Estado Republicano, a serviço de todos os cidadãos e da garantia de seus direitos individuais e de sua dignidade humana ainda está longe de ser uma realidade no Brasil. A maior expressão desse déficit republicano, no caso do Rio de Janeiro, foi a inação do Estado no cumprimento de seu papel de regulador do espaço público. Como se sabe, nas favelas e periferias, esse papel passou a ser cumprido − especialmente a partir da década de 80 − por grupos criminosos de milicianos e traficantes de drogas. O direito à vida e à segurança pública de uma imensa parcela da população carioca foram ignorados.
No processo de afirmação da estratégia da “guerra às drogas” como prioridade de combate à criminalidade, a iniciativa seguinte do Estado foi transformar as favelas em uma arena de guerra, tratando os criminosos como inimigos a serem exterminados. Outra vez, as maiores vítimas do processo, além dos jovens traficantes e policiais, foram os moradores das favelas. Estes, perplexos, viram seus direitos fundamentais massacrados e seu cotidiano transformado em caos em função dos desejos e vontade dos “senhores da guerra”.
Foi criado um Território de Exceção nas favelas, um espaço onde a Constituição e as leis brasileiras não são levadas em conta. Devido a isso, as forças policiais e o próprio poder judiciário naturalizam e admitem, por exemplo, a invasão de todas as casas da Maré em busca de armas, drogas e criminosos (indivíduos estes que representam uma parcela ínfima daquela população), em ato de afronta ao Estado Democrático de Direitos.
O enfrentamento da criminalidade deve ter como premissa a garantia do direito à segurança pública dos moradores e não pode servir como justificativa para o seu sequestro. Assim, mais do que nunca, a Maré, nesse momento, é uma metáfora e um exemplo concreto de para onde queremos caminhar como sociedade.
Eliana Sousa Silva
Jailson de Souza e Silva
Diretor do Observatório de Favelas
Artigo publicado no jornal O Globo
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